quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Morre Nelson Mandela, aos 95 anos


    às 20h02                                                

Morre Nelson Mandela, aos 95 anos

Por Vitor Paolozzi | Valor
SÃO PAULO  -  Morreu nesta quinta-feira em sua residência, em Johannesburgo, aos 95 anos, Nelson Mandela, o homem que comandou, inclusive por meio da luta armada, a campanha pelo fim do apartheid, o regime segregacionista da África do Sul, e que foi o primeiro presidente do país após a sua democratização.  

Schalk van Zuydam/APO líder africano ficou preso durante 27 anos e meio e, ao sair, mostrou carisma e liderança à altura das enormes expectativas depositadas sobre seus ombros, evitando a ameaça de uma guerra civil e conduzindo um processo de reconciliação entre negros e brancos que lhe valeu uma admiração universal, um prêmio Nobel da Paz, o título de “herói dos heróis”, da revista “The Economist”, e a classificação como “talvez o mais amado estadista do mundo”, do jornal “The New York Times”.
Mandela ficou internado em um hospital de 8 de junho a 1º de setembro, recebendo tratamento para uma infecção pulmonar. Essa foi a quarta internação nos últimos seis meses. Com a saúde em gradual deterioração, Mandela não fazia aparições públicas desde 2010. Mandela foi levado para sua residência no dia 1º de setembro após quase três meses internado.
Rolihlahla Mandela, seu nome verdadeiro, nasceu em 18 de julho de 1918 em Mvezo, uma vilazinha na região de Transkei, sudeste da África do Sul, numa época e num país em que os negros não participavam de eleições, não podiam frequentar restaurantes, praias, escolas, hospitais e outros locais de uso exclusivo de brancos, eram obrigados a ficar dentro de áreas delimitadas e precisavam portar passes ao sair delas, sob risco de serem presos caso não os apresentassem quando exigido.

Seu pai era o chefe tribal dos mvezo, pertencentes à tribo thembu, da etnia xhosa. Como parte da sua preparação para um dia ocupar uma função de liderança na tribo, foi enviado para uma escola de missionários ingleses e lá ganhou o nome Nelson no primeiro dia de aula. De acordo com a tradição tribal, Mandela aos 16 anos ainda receberia outro nome, Dalibhunga, após fazer circuncisão. Também era conhecido como Madiba, nome do seu clã indígena.
Décadas mais tarde, conseguiu evitar ganhar mais um nome, quando casou-se pela terceira vez, com a ativista pró-direitos humanos Graça Machel, viúva do presidente moçambicano Samora Machel. “Pelo menos ela permitiu que eu mantivesse meu sobrenome”, disse, brincando, ao comentar o temperamento forte da mulher. Suas duas primeiras esposas foram Evelyn Ntoko Mase, com quem teve dois filhos e duas filhas, e Winnie Madikizela, que lhe deu duas filhas.
Mandela ainda poderia ter se casado com uma outra mulher, caso tivesse se conformado com planos traçados por um chefe tribal. Na juventude, para escapar de uma união arranjada, Mandela fugiu para Johannesburgo. Lá, teve uma série de empregos temporários e concluiu um curso de direito. Enquanto estudava, começou a se interessar por política e, em 1943, entrou para o Congresso Nacional Africano (CNA)  — entidade criada em 1812 para defender os direitos da população negra e que viria a se tornar o principal partido do país no fim do século passado.
Com o amigo Oliver Tambo, que também teria papel importante no CNA, abriu, em 1952, o primeiro escritório de advocacia na região central de Joannesburgo conduzido por negros. Por volta dessa época, começaram seus problemas com o regime racista. Com base no Decreto de Supressão do Comunismo, Mandela foi acusado e condenado à prisão, com direito a sursis, devido à sua atuação na Campanha de Desafio às Leis Injustas.
Mandela foi um dos maiores defensores da aproximação do CNA com o Partido Comunista da África do Sul. Em sua autobiografia, “Longa Caminhada até a Liberdade” (ed. Nossa Cultura), conta que, após estudar as obras de Marx, Engels, Lênin, Stálin e Mao Tsé-tung, viu-se “fortemente atraído pela ideia de uma sociedade sem classes sociais”. Sem se converter ao comunismo, porém, concluiu que “os nacionalistas africanos e os comunistas africanos em geral tinham muito mais coisas unindo-os que os separando”.
Em 1955, Mandela teve papel destacado na adoção da Carta da Liberdade, manifesto de diversas organizações de defesa dos negros que reivindicava reforma agrária e um Estado sem segregação. A reação do governo foi levar a julgamento por traição 156 ativistas, entre os quais Mandela. Apesar da absolvição, a situação continuou a se agravar e, em 1960, após o massacre de 69 manifestantes que exigiam a abolição dos passes de circulação, o governo proibiu a existência de grupos políticos negros e fez centenas de prisões.
Mandela decidiu então abandonar a não violência e aderir à luta armada. Passou a ler todo o material que conseguiu encontrar sobre guerra de guerrilha, incluindo textos de e sobre Mao Tsé-Tung, Che Guevara, Fidel Castro e Menachem Begin (um dos líderes da oposição armada ao governo do mandato britânico na Palestina e que iria se tornar primeiro-ministro de Israel). Entre as alternativas de guerra de guerrilha, terrorismo, revolução declarada e sabotagem, Mandela optou pela última, mas sem descartar as demais.
“Porque não envolve perdas de vida a sabotagem oferecia a melhor esperança de reconciliação entre as raças no futuro. Nós não queríamos iniciar um conflito de sangue entre brancos e negros (...) Como ficariam as relações entre brancos e negros se provocássemos uma guerra civil? Sabotagem tinha a virtude adicional de exigir a menor quantidade de mão de obra. Nossa estratégia era fazer incursões seletivas contra instalações militares, usinas, linhas telefônicas e conexões de transporte; alvos que não apenas dificultariam a eficiência militar do Estado, mas que assustariam os apoiadores do Partido Nacional, afugentariam o capital estrangeiro e enfraqueceriam a economia”, escreveu em sua autobiografia.
Mandela foi preso em 1962 e sentenciado a cinco anos de encarceramento. Dois anos depois, recebeu nova condenação, desta vez à prisão perpétua. Ele passaria recluso os próximos 27 anos e meio. De início, foi submetido a trabalhos forçados, tendo que literalmente quebrar pedras. Também teve que enfrentar o isolamento, tanto em cela solitária como no contato com o mundo exterior, só podendo receber uma visita por ano e uma carta a cada seis meses.
“A prisão e as autoridades conspiram para roubar a dignidade de cada homem. Isso em si assegurou que eu iria sobreviver, pois qualquer homem ou instituição que tente roubar de mim a minha dignidade vai perder porque não vou me separar dela por preço algum ou sob qualquer pressão”, escreveu em sua autobiografia.
Nos últimos 14 meses de prisão, porém, a situação já era outra: ficou em um chalé com piscina, dentro de uma penitenciária modelo. Anos depois, ao projetar sua casa, reproduziu exatamente o desenho do chalé.
A mudança nas condições enfrentadas na prisão, acontecida ao mesmo tempo em que se intensificavam os conflitos entre brancos e negros, refletiu a decisão do CNA de personalizar em Mandela a luta pela libertação dos presos políticos e também a necessidade do governo de encontrar um interlocutor que tivesse suficiente autoridade moral para negociar uma saída que evitasse uma guerra civil.
Três anos antes de ser libertado, Mandela já vinha mantendo conversas com representantes do governo. Ele tomou solitariamente, sem consultar a liderança do CNA, a decisão de abrir conversações. “Há vezes em que um líder deve se movimentar à frente do rebanho, partir em uma direção diferente, confiante que está liderando o seu povo no caminho certo”, escreveu Mandela.
Por diversas vezes, durante os anos de prisão, o governo ofereceu a liberdade a Mandela em troca de concessões, como a renúncia à luta armada. Mandela sempre recusou. No início de 1985, o então presidente, P. W. Botha, depois de mais uma negativa, disse no Parlamento: “Não é o governo sul-africano que agora está no caminho da liberdade do sr. Mandela. É ele próprio”.
A resposta de Mandela foi uma carta, lida por sua filha Zindzi: “Muitos já morreram desde a minha ida para a prisão (...) Tenho uma dívida com as suas viúvas, com seus órfãos, com suas mães e com os seus pais (...) Que liberdade me oferecem enquanto a organização do povo permanece banida? Que liberdade me oferecem quando posso ser preso por uma contravenção de passe? (...) Que liberdade me oferecem quando tenho que pedir autorização para morar em uma área urbana? Que liberdade me oferecem quando a minha própria cidadania sul-africana não é respeitada?”.
No começo de 1990, quando finalmente decidiu libertar Mandela sem impor condições, o regime mais uma vez foi contrariado. No dia 9 de fevereiro, o prisioneiro foi levado ao palácio do governo para um encontro com o presidente Frederik de Klerk, que lhe comunicou que seria solto no dia seguinte. Mandela então agradeceu, mas pediu para ficar detido mais uma semana, pois julgava esse tempo necessário para que sua família e o CNA fizessem preparações. O presidente disse que o pedido não poderia ser aceito porque a imprensa estrangeira já havia sido avisada.
Fora da prisão, Mandela liderou com De Klerk as negociações que resultaram em uma nova Constituição e na convocação de eleições presidenciais para 1994. Foi um processo difícil, complicado pela escalada da violência no país, instigada por grupos extremistas de direita, e com muitos atritos entre Mandela e De Klerk.
Durante a abertura da Convenção para uma África do Sul Democrática — o fórum de negociações entre o governo, o CNA e outros grupos políticos —, após a fala de De Klerk, Mandela reagiu com um forte ataque ao que considerou um discurso desleal do presidente: “Mesmo o líder de um regime de minoria desacreditado e ilegítimo, como é o dele, tem certos padrões morais a manter (...) Se um homem pode vir para uma conferência dessa natureza e fazer o tipo de política que ele fez, pouquíssimas pessoas gostariam de negociar com tal homem”.
Ainda assim, os dois negociaram — e acabaram dividindo o Nobel da Paz de 1993. Anos depois, De Klerk falaria sobre Mandela numa palestra em março de 2012: “Eu não endosso a hagiografia geral em torno de Mandela. Ele de modo algum era a figura afável e santificada tão amplamente divulgada hoje. Como adversário político, ele podia ser brutal e bastante injusto (...) Contudo, sempre que a situação exigiu, ele foi capaz de se elevar acima das paixões políticas do momento e se unir a mim na definição de acomodações que permitiram o prosseguimento do processo. Ele também teve a estatura e a força para manter unida a sua incontrolável aliança, mesmo nos momentos mais difíceis”.
Eleito presidente, Mandela assumiu em maio de 1994. Para a cerimônia de posse, convidou três guardas brancos encarregados de vigiá-lo durante os anos de cárcere. “Mesmo nos momentos mais sombrios na prisão, quando meus colegas e eu éramos empurrados ao nosso limite, eu via um vislumbre de humanidade em um dos guardas, talvez apenas por um segundo, mas era o bastante para me dar confiança e ir em frente”, escreveu.
Uma das iniciativas mais importantes durante o governo de Mandela foi a criação da Comissão da Verdade e Reconciliação. Os trabalhos da comissão centraram-se em três áreas: investigação de abusos de direitos humanos cometidos entre 1960 e 1994; reparação e reabilitação das vítimas; concessão de anistia aos perpetradores de crimes. O perdão não foi concedido indiscriminadamente. Era necessário haver motivação política para os crimes e os perpetradores não podiam ocultar quaisquer informações. Aqueles que não pedissem anistia, ficariam sujeitos a processos e condenações.
Como chefe do Executivo, Mandela sofreu muitos ataques. “Privados de tudo por tanto tempo, os negros queriam tudo, sem demora! Educação melhor, habitação melhor, saúde melhor, salários melhores etc. Mas nem mesmo Mandela podia atender a essas expectativas urgentes, e assim estava destinado a ser uma decepção”, afirma o jornalista David James Smith, autor do livro “Young Mandela”.
Mandela optou por se afastar do dia a dia do governo, delegando a maior parte das tarefas a assessores e preferindo se dedicar às funções cerimoniais e à política externa. Empenhou-se em patrocinar a resolução de conflitos em países africanos e tentou intermediar uma saída para a crise entre Líbia, Reino Unido e Estados Unidos por conta do atentado de Lockerbie. E despertou a ira de detratores ao fazer declarações elogiosas a ditadores como Fidel Castro, Saddam Hussein, Suharto (que governou a Indonésia por 31 anos) e Muamar Gadafi.
Uma das áreas mais negligenciadas em seu governo foi o combate à aids — algo particularmente grave, já que estima-se que a África do Sul é o país com o maior número de pessoas infectadas com o vírus HIV. Um dos principais críticos nessa questão foi Edwin Cameron, juiz da Suprema Corte sul-africana. Mas mesmo Cameron vê atenuantes: “Ele tinha outras 200 coisas urgentes para fazer, incluindo salvar nosso país da destruição total num conflito racial. Isso ele conseguiu. O fato de ele não ter tido um impacto na aids durante a sua Presidência deve ser relevado por causa disso”. Cameron destaca ainda que Mandela reconheceu o erro e, após deixar o governo, teve papel crucial no aprimoramento das políticas públicas contra a doença.
Prince Mashele, professor do departamento de Ciências Políticas da Universidade de Pretória, também acha que Mandela salvou o país de uma guerra civil. “Ele se tornou o queridinho dos brancos e, assim, inspirou a confiança deles num governo negro. Ele também neutralizou a raiva ‘negra’ contra os brancos, algo que muito poucos líderes do CNA teriam conseguido. Mas há vozes negras que pensam que Mandela mimou os brancos à custa dos negros”, diz Mashele.
Apesar de haver a possibilidade de reeleição, Mandela achou que contribuiria mais para o fortalecimento da democracia no país se se retirasse da Presidência depois de apenas um mandato de cinco anos. “Mandela merece boa parte do crédito pela relativa civilidade da vida política sul-africana. Como presidente, manteve um estilo político que estimulava a participação política e a deliberação democrática”, avaliou um de seus biógrafos, Tom Lodge (autor de “Mandela: A Critical Life”), em artigo para o site openDemocracy.
Após sair da Presidência, Mandela montou três fundações para atuar em projetos humanitários. Em 2007, foi um dos criadores do The Elders (os anciões), grupo que reúne ex-líderes, como Jimmy Carter, Desmond Tutu, Kofi Annan e Gro Harlem Brundtland, para propor soluções para grandes problemas globais. Um dos participantes é Fernando Henrique Cardoso. “Sua figura humana me marcou profundamente. Mandela é um desses homens raríssimos que têm uma ‘aura’ própria, um magnetismo que não se sabe bem de onde vem, mas que contagia a todos. Quando entrava numa sala, era como se o ar se carregasse de eletricidade”, escreveu o ex-presidente brasileiro no prefácio à edição brasileira da autobiografia do sul-africano.

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